Beijinho no ombro
- Laís Malek
- 1 de fev. de 2017
- 3 min de leitura
Nascida em 1978 no Irajá, um bairro humilde do Rio de Janeiro, Valesca trabalhava como frentista em um posto de gasolina quando entrou para a Gaiola das Popozudas em 2000, assumindo o nome artístico de Valesca Popozuda. O grupo começou a fazer sucesso com as músicas “Late Que eu Tô Passando” e “Agora Sou Solteira” o que, pré-primavera feminista dos anos 2010, significava o primeiro contato de muitas mulheres com o empoderamento feminino. Ao se tornar uma figura pública de referência, passou a desempenhar um novo papel social. Segundo a teoria dos papeis sociais, “o tipo de papel que uma pessoa pode desenvolver, frente a uma determinada situação, será definido pela combinação das suas características de personalidade e pelas expectativas de papel que o ambiente psicossocial que a circunda tem em relação ao papel que a pessoa deve desempenhar” (“O papel do professor e do professor alfabetizador”, Cristiane Giusti Vargas Nakajima).
Já consolidada como diva, Valesca saiu do grupo e partiu para a carreira solo. Junto com sua popularidade, aumentou também a pressão: a cantora passou a ser cobrada sobre seu posicionamento em diversas questões feministas. Segundo o sociólogo americano R. L. Khan, o indivíduo que se torna uma referência em algum meio possui certas expectativas de papel a atender. Em seu livro “Organizational stress: studies in role conflicts and ambiguity” (New York: John Wiley & Sons, 1964) ele afirma que essas expectativas pautam o comportamento do indivíduo, que para ser aceito deve corresponder a esses padrões de atuação social impostos pelo meio em que se insere. No caso de Valesca, isso significa reafirmar-se enquanto ativista e repudiar a ideia de que estaria se utilizando da recém-adquirida popularidade do feminismo para alavancar sua carreira. Em entrevista à edição brasileira do jornal El País em dezembro de 2015, a funkeira afirmou: ‘Sou feminista desde que nasci. Vim de um berço onde a minha melhor inspiração foi e continua sendo a minha mãe. Feminismo é ter voz para lutar contra a desigualdade”.

O funk feminino hoje representa, mais do que um gênero musical, um meio de despertar nas mulheres, principalmente periféricas, a sua descoberta enquanto feministas. A dupla jornada — o acúmulo de funções do trabalho fora de casa com os trabalhos domésticos e a criação dos filhos —, muitas vezes realizada completamente sem qualquer tipo de auxílio do pai da criança, é uma realidade para muitas mulheres das classes média e baixa, majoritariamente negras. Segundo dados do governo de 2014 sobre o Bolsa Família, 93% das famílias atendidas pelo programa são chefiadas por mulheres e destas, 68% são negras. O caráter revolucionário do funk feminista não se estabelece por propor a independência e autonomia feminina, mas sim por representar as mulheres para quem esses conceitos significam a teoria do que elas fazem na prática, que são invisibilizadas pela grande mídia.
Assim como todo movimento sociopolítico, o feminismo não se trata de conceitos pré-estabelecidos que podem ser resumido em um verbete. É um movimento de construção contínua, com diferentes vertentes e interpretações. O papel que Valesca desempenha nele, porém, é indiscutível: suas músicas têm um impacto em mulheres periféricas de um modo que dificilmente um texto acadêmico teria. Enquanto discussões sobre o que Judith Butler quis dizer quando falou de performances de gênero ocorrem no feminismo acadêmico, Valesca aborda violência doméstica e a decisão de separar-se de um homem abusivo em “Larguei Meu Marido”, a liberdade sexual feminina em “Agora Sou Solteira” e até mesmo a causa LGBT em “Sou Gay’. Vale mencionar que, além de uma referência para mulheres, Valesca também se tornou um ícone LGBT não só pelo apoio que demonstra em relação a comunidade continuamente, mas também por contratar dançarinos gays e transexuais para seus shows. Sua contribuição para o movimento não se dá, portanto, através de quantidades de leituras de artigos, mas pelo fato de as mulheres encontrarem em suas músicas a força da qual precisavam para buscar sua autonomia. A mensagem que a cantora passa é a mesma que aprendeu com os exemplos das mulheres de sua vida e que espera que seu público feminino assimile — como diz a letra de um de seus sucessos: “Tá pra nascer homem que vai mandar em mim”.
Comments